Na última sexta-feira (23), o Espaço Mário Gusmão, sede da Casa da Cultura Afro-Brasileira em Brasília, recebeu uma série de lançamentos literários voltados à produção intelectual negra e à valorização da memória ancestral. A atividade fez parte da programação do Palmares Canta Conta e Dança, que promoveu encontros entre escritores, pesquisadores, estudantes e representantes de instituições públicas e diplomáticas.
Entre os lançamentos, Mãe Baiana de Oyá apresentou O Legado Ancestral dos Terreiros de Brasília, livro que reúne relatos de lideranças religiosas do Distrito Federal. “Brasília tem povo preto, tem terreiro, tem história. E precisa, urgentemente, aprender a acolher esse legado”, afirmou durante sua fala.
A historiadora Ivana Stolze Lima lançou Antônio, escrivão português, e Rita, africana do Benim: essa não é uma história de amor. resultado de uma pesquisa sobre a trajetória de uma mulher escravizada no século XIX. Segundo ela, “a escravização foi mais do que trabalho forçado. Foi a captura de saberes médicos, técnicos, alimentares, comunitários”.
O escritor J. Santos apresentou Bendito é o Fruto, homenagem ao radialista angolano Arthur Riscado. “Cada baobá que plantei é uma memória viva. Essa obra é meu reencontro com Salvador, com Luanda e comigo mesmo”, declarou ao relembrar sua trajetória entre Brasil e Angola.
A escritora Barbara Martins, da Fundação Perseu Abramo, apresentou o terceiro volume da coleção Chacinas e a Politização das Mortes, que trata dos massacres de Pau D’Arco (PA) e do Quilombo de Iúna (BA), Chacinas e Conflitos Agrários: os casos de Pau D’Arco e do Quilombo de Iúna. Para ela, “o passado colonial segue armado no presente. Pau D’Arco e Iúna mostram que viver com dignidade na terra ainda custa caro”.
Na abertura do evento, o presidente da Fundação Cultural Palmares, João Jorge Rodrigues, afirmou que “o que estamos construindo aqui é um marco: um lugar onde a cultura afro-brasileira é tratada com a centralidade que merece”. Ele destacou ainda que “a Casa da Cultura Afro-Brasileira precisa ser percebida como um território de pensamento, de formulação e de presença política”, e que a atuação da Fundação vai além da memória: “atuamos com projeto de país. E isso passa por afirmar que música, literatura e arte negra são patrimônio estratégico, não apenas expressão estética”.
Representando o Ministério da Igualdade Racial, Marcilene Garcia de Souza ressaltou a importância da articulação institucional entre o governo e a sociedade civil. Disse que “é sempre potente ouvir João Jorge, porque ele fala com a verdade de quem veio da luta, conhece o chão das comunidades e compreende o papel das instituições não como fim, mas como meio para garantir direitos e visibilidade à população negra”, afirmou.
Para o presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, Alexandre Santini, o encontro reforça a necessidade de integrar a memória afro-brasileira às políticas culturais estruturantes do país. “Trabalhamos com patrimônio, cultura e pensamento crítico. Estar aqui, em diálogo com a Fundação Palmares, é fortalecer uma agenda comum de enfrentamento ao apagamento histórico.”
O diplomata moçambicano Newton Mungioso, segundo-secretário da Embaixada de Moçambique, pontuou que “quando reconhecemos que a cultura negra brasileira tem raízes profundas no continente africano, abrimos espaço para um diálogo de iguais”. Segundo ele, “Moçambique e Brasil compartilham desafios e potências”, e fortalecer as trocas culturais e acadêmicas “é essencial para uma diplomacia que valoriza os saberes dos povos, e não apenas as estratégias dos governos”.
Durante o encontro, o presidente da Fundação Banco do Brasil, Kleytton Morais, anunciou a formalização de um acordo de cooperação com a Fundação Palmares. “Reconhecer a contribuição africana na formação do Brasil exige ação institucional. Queremos garantir recursos, continuidade e escala para projetos que traduzam esse compromisso na prática.”
Na quinta-feira (22), estudantes de quatro escolas públicas do Distrito Federal participaram de uma roda de conversa sobre literatura, infância e identidade. Estavam presentes alunos do CEF 410 Norte, do Centro de Educação Infantil 01 de São Sebastião, do Centro de Ensino Médio Setor Oeste (CEMSO) e do Centro Educacional São Francisco, também de São Sebastião.
O encontro reuniu o escritor mirim Arthur Ramos e as Pretinhas Leitoras, projeto criado pelas irmãs Duda e Helena, do Morro da Providência (RJ). As jovens compartilharam a trajetória do grupo, que nasceu do desejo de tornar a leitura um espaço de resistência e valorização da identidade negra na infância. Arthur apresentou sua personagem Dona Corujinha, uma coruja que ensina o valor de ser quem se é.
Guilherme Bruno, coordenador do Centro de Informação e Acervo da Fundação, afirmou que “valorizar a cultura negra é combater o racismo na base”. Segundo ele, “quando uma criança negra se vê em um livro, quando se reconhece em uma história, ela constrói identidade”. Para Guilherme, “a literatura afrocentrada não é só conteúdo escolar. É uma tecnologia de afeto, um instrumento de emancipação que rompe com o silenciamento histórico das nossas narrativas”.
A programação do dia incluiu ainda a roda de conversa Abdias Nascimento — Celebração, Memória e Resistência, que reuniu pesquisadores e convidados para debater o pensamento e o legado político e intelectual do ativista, senador e fundador do Teatro Experimental do Negro.
O encerramento do evento contou com apresentação do rapper GOG, que levou ao palco um repertório marcado por crítica social, denúncia e memória periférica. “A arte não pode ser neutra. Quando a gente sobe no palco, carrega o peso e a beleza de quem veio antes, de quem resistiu para que hoje pudéssemos estar aqui”, afirmou. Para ele, “o rap é a nossa crônica, a nossa denúncia e também nosso abraço. É palavra afiada, mas é também cuidado com o povo”.
Realizado às vésperas do Dia da África, celebrado em 25 de maio, o Palmares Canta Conta e Dança reafirma o papel da Fundação Cultural Palmares como elo entre o patrimônio cultural afro-brasileiro e os processos de reconhecimento internacional das heranças africanas na formação do país.
Fonte: Ministério da Cultura