Geoglifos preservam a memória ancestral do Acre e transformam identidade cultural em destino turístico: ‘Potencial incrível’

Acre

Sob a densa vegetação amazônica, emerge um legado milenar desenhado em traços geométricos, revelado com o avanço da ocupação urbana na região, especialmente no estado do Acre. Formados por valetas e muretas, os chamados geoglifos são figuras de diferentes formatos e dimensões que guardam vestígios de uma civilização ancestral que habitou o sudoeste da Amazônia Ocidental.

Essas estruturas estão concentradas, sobretudo, na porção leste do Acre, em áreas de interflúvios, nascentes de igarapés e várzeas, com destaque para as margens dos rios Acre e Iquiri.

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Os geoglifos representam uma riqueza cultural e histórica inestimável, hoje ameaçada pelo avanço do desmatamento. Foto: Diego Gurgel/Secom

Antes restrito ao debate regional, o tema ganhou projeção internacional, atraindo olhares de pesquisadores e turistas interessados em desvendar os mistérios dessa cultura milenar. Entre as muitas perguntas ainda sem resposta, estudiosos acreditam que os geoglifos possam ter servido como monumentos cerimoniais, símbolos de rituais, encontros sociais ou práticas espirituais de povos que deixaram suas marcas na terra e na história.

Até o momento, mais de mil sítios arqueológicos desse tipo foram identificados no Acre, número que continua crescendo conforme novas pesquisas são realizadas, inclusive na região sul do Amazonas nos municípios de Boca do Acre e Lábrea.

Indicados para Patrimônio Mundial pela Unesco, os geoglifos da Amazônia têm se consolidado como um dos principais atrativos da região, não apenas para o turismo, mas também para estudiosos e entusiastas da história e da cultura ancestral.

Para o pesquisador, o atual cenário demonstra avanços nas discussões e maior atenção às políticas voltadas à preservação e valorização dos geoglifos. Foto: Diego Gurgel/Secom

Referência incontestável no estudo dessas enigmáticas estruturas, o geógrafo, paleontólogo e professor aposentado da Universidade Federal do Acre (Ufac), Alceu Ranzi, dedica-se há mais de duas décadas ao tema e idealizou o Instituto Geoglifos da Amazônia (IGA). Para ele, quanto mais se aprofunda no tema, mais percebe que as perguntas superam as respostas.

Estima-se que a civilização responsável por esses traçados tenha habitado a Amazônia por volta de 1.300 a.C., em um período em que o bioma apresentava características bastante distintas das atuais.

A pesquisadora Denise Pahl Schaan foi pioneira ao desvendar que os geoglifos não serviam como moradias, áreas de cultivo ou criação de animais, mas sim como espaços destinados a cerimônias, festividades e cultos. Segundo Ranzi, essa dimensão cosmológica dos geoglifos ainda ressoa na memória ancestral do povo Apurinã, revelando uma conexão profunda entre passado e presente.

“Até cerca de 20 anos atrás, antes da descoberta dos geoglifos, acreditava-se que essa região do oeste da Amazônia era periférica, habitada apenas por grupos nômades que caçavam, pescavam e circulavam sem deixar vestígios. Tínhamos a ideia de que era uma floresta intocada. Mas esses monumentos ressurgiram com o avanço do desmatamento e da urbanização, revelando uma cidade oculta sob a densidade da mata.”

Geoglifos são estruturas geométrica, ligadas por caminhos, que podem revelar detalhes de uma cultura milenar. Foto: Diego Gurgel/Secom

Respeito à cultura revelada

O pesquisador ressalta que o estudo dos geoglifos é fundamental para aprofundar o conhecimento sobre a história e a cultura do Acre. Segundo Ranzi, embora já tenha havido avanços significativos nas discussões acadêmicas e nas políticas públicas voltadas ao tema, ainda há um longo caminho a ser percorrido até que se obtenham respostas mais conclusivas.

“Sempre digo que os geoglifos nos trazem muito mais perguntas do que respostas, e essas respostas são fundamentais para compreendermos a cultura e o sentimento de pertencimento de quem vive no Acre, especialmente na região do Rio Purus. São monumentos deixados por um povo que os utilizava como espaços cerimoniais. Por isso, ao escavarmos esses locais, pedimos permissão à Pachamama, a mãe terra. Pode ser um cemitério, pode ser algo sagrado para eles, e é por isso que sempre entramos com respeito”, pontua.

Os geoglifos representam uma riqueza cultural e histórica inestimável, hoje ameaçada pelo avanço do desmatamento. Diante desse cenário, órgãos públicos e entidades diversas têm se mobilizado para desenvolver estratégias que valorizem essas estruturas como símbolo identitário do Acre. A proposta é transformar esse patrimônio em um motor para o turismo regional, impulsionando toda a cadeia produtiva associada.

De forma lúdica, Sete produz cartilha onde estão inseridos geoglifos para colorir. Foto: reprodução

Geoglifos como identidade do Acre

Em julho, a Secretaria de Estado de Turismo e Empreendedorismo (Sete) marcou presença no 5º Simpósio Internacional de Arqueologia da Amazônia Ocidental. O evento abordou o turismo de base comunitária, já consolidado em diversas regiões do Acre, e discutiu como esse modelo pode ser adaptado e potencializado no contexto do turismo arqueológico, valorizando o patrimônio histórico e cultural local.

Para o pesquisador, o atual cenário demonstra avanços nas discussões e maior atenção às políticas voltadas à preservação e valorização dos geoglifos. Ele destaca, inclusive, um projeto de lei em tramitação na Câmara de Vereadores de Rio Branco que propõe a criação da Semana dos Geoglifos.

Segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), dos 462 geoglifos catalogados até o momento, 56 estão localizados em Rio Branco. Com esse número expressivo, que tende a crescer com o avanço das pesquisas, o município desponta como candidato natural ao título de “capital dos geoglifos”.

Mas há estruturas também no interior do estado. Ainda em julho, escavações foram realizadas em Assis Brasil, no quilômetro 6 da BR-317, Estrada do Pacífico, em um sítio arqueológico batizado de “Sol do Alemão”. Foram 60 dias de estudos intensivos, e o material coletado agora segue para análise.

“Todos os anos temos uma campanha de campo, e a deste ano foi dedicada à escavação de vários geoglifos em busca de material orgânico para datação por carbono 14. Escavamos desde Assis Brasil até Boca do Acre, de Sena Madureira até a Extrema, porque queríamos abranger uma grande área geográfica para verificar se realmente eles têm a mesma idade, se foram feitos no mesmo período. Foram 60 dias coletando esse material, que agora está em análise na Suécia, e em breve teremos esses dados”, enfatiza Ranzi.

Material colhido durante escavações que duraram 60 dias foram enviadas à Suécia. Foto: IGA

Capital dos Geoglifos

Nos últimos anos, o estado tem avançado no reconhecimento dos geoglifos como patrimônio cultural e histórico, intensificando ações junto à comunidade para preservar essas estruturas milenares e revelar seu potencial turístico e científico. Apesar dos esforços, ainda há um debate intenso sobre como construir parcerias eficazes, já que grande parte dos geoglifos está localizada em propriedades privadas.

Mesmo que a ocupação tenha ocorrido de forma inconsciente, a capital acreana foi erguida ao redor dessas formações ancestrais. Por isso, tem ganhado força o estreitamento de laços entre poder público e sociedade civil, com foco na conscientização e na atuação da Secretaria de Empreendedorismo e Turismo (Sete) para fomentar o turismo comunitário. A proposta é que os proprietários dessas terras reconheçam seu papel como guardiões de um patrimônio de valor inestimável.

Para ele, é essencial que a população reconheça e incorpore a importância dessas estruturas como parte de sua identidade e memória coletiva. “Precisamos incluir os geoglifos nas nossas cartilhas, nos nossos livros. Na escola, nossos meninos aprendem sobre as pirâmides do Egito, mas não têm acesso à própria história. E isso é fundamental para que, desde a infância, possamos cultivar o sentimento de pertencimento”, conclui.

Raquel Frota, da Sete, explica que ações para consolidar turismo arqueológico no Acre estão sendo efetivadas. Foto: Ingrid Kelly/Secom

Educação patrimonial

A Sete já vem desenvolvendo ações voltadas ao fortalecimento do sentimento de pertencimento em relação aos geoglifos. Uma dessas iniciativas é o projeto lúdico Cidade em Lápis para Colorir, que disponibiliza desenhos dos geoglifos para pintura, acessíveis gratuitamente no site da secretaria, permitindo que crianças e adultos se conectem com esse patrimônio de forma criativa e educativa.

Além disso, estão sendo elaboradas estratégias para dialogar com dois públicos distintos: os visitantes interessados em conhecer os sítios arqueológicos e os proprietários das terras onde essas estruturas estão localizadas. A proposta é construir pontes entre preservação, turismo e valorização cultural, promovendo o engajamento comunitário e o reconhecimento do papel desses guardiões da memória ancestral.

Raquel Frota, doutoranda em Antropologia e Arqueologia, além de socióloga e historiadora, atua como assessora técnica da Sete. Com sua ampla formação acadêmica e experiência, ela acompanha de perto as ações e os desafios relacionados a essa temática no estado.

“Nós temos mais de mil geoglifos identificados pelas tecnologias e estas estruturas estão interligadas por caminhos. Isso é um potencial incrível, em nenhum outro lugar do mundo, nós possuímos uma singularidade tão grande dos sítios arqueológicos, que são diversos e revelam que nós tivemos aqui na Amazônia uma cultura riquíssima”, reforça.

Um indício de que, diferente do que se achava antes do registros dessas estruturas, povos conscientes e complexos viveram no estado antes das delimitações geográficas que conhecemos hoje.

Trata-se de um indício revelador de que, ao contrário do que se supunha antes do registro dessas estruturas, sociedades conscientes, organizadas e culturalmente complexas já habitavam o território muito antes das delimitações geográficas atuais.

“Hoje, esses sítios estão dentro de propriedades privadas. Então, como posso dizer a essas pessoas que não podem destruir aquele patrimônio? É aí que o turismo entra, envolvendo a comunidade, para que os donos dessas terras desenvolvam não apenas uma apropriação do território, mas também uma apropriação cultural, e que sejam eles os contadores dessas histórias”, explica.

Severino Calazans tem 103 anos e mora na área do sítio arqueológico há mais de 30 anos. Foto: Marcos Rocha/Sete

Rotas dos Turismo

Existem dois sítios arqueológicos de maior relevância e notoriedade. Um deles é o Jacó Sá, localizado em Rio Branco e tombado pelo Iphan em 2018. O outro é o Severino Calazans, nome do proprietário da área, atravessado pela BR-317. Raquel explica que o trabalho da Sete é demonstrar que essa rota deve ser mantida e preservada, e que, paralelamente, possa se tornar uma fonte de renda para as famílias da região.

“A gente precisa realmente trabalhar em políticas públicas voltadas para a conscientização tanto da importância dos geoglifos em nível histórico e cultural, quanto da sua relevância em nível monetário, e mostrar aos proprietários dessas terras que eles podem lucrar com o turismo nessa área de maneira responsável. Isso impacta diretamente na educação patrimonial e na preservação dos próprios geoglifos”, garante a pesquisadora.

O próximo passo para fortalecer a apropriação da cultura acreana é a formalização de um termo de cooperação técnica com a Secretaria de Educação, visando a criação de materiais didáticos voltados à conscientização das crianças sobre os atrativos turísticos da região.

“Os geoglifos são um grande potencial, mas precisam ser vistos em conjunto com outras potencialidades também. O Acre tem muito a ganhar com isso. Acho que a gente só tem a ganhar com o reconhecimento dos geoglifos, porque em nenhuma outra parte do país existe tamanha complexidade, tamanho exemplo de complexidade em meio a um ambiente tão inóspito, quanto a Amazônia. Até os anos 70 a Amazônia era vendida com um deserto verde”, enfatiza.

Para Raquel, trabalhar o sentimento de pertencimento nas escolas é uma forma de empoderamento. Foto: Ingrid Kelly/Secom

Empoderamento

Fruto do trabalho de pesquisadores pioneiros, os geoglifos hoje despertam o interesse do mundo, encantando e instigando a curiosidade sobre formas antigas de vida humana. Para Raquel, incluir esse tema nas escolas é também uma maneira de empoderar meninos e meninas, valorizando a capacidade e o potencial de cada um.

“Não se acreditava, achava-se que tudo aqui era só mato, que não existiam pessoas, porque era realmente muito difícil conceber uma vida no meio da floresta, considerada um ambiente inóspito. A gente aprende nas escolas o lado europeu da história e não aprende o nosso. Com isso, somos levados a acreditar que temos uma certa inferioridade. E o geoglifo, e aí está o potencial do geoglifo, transforma essa visão em potência”, pontua.

Levando em consideração as datas de construção dos geoglifos, elas coincidem com o período em que os gregos estavam desvendando os fundamentos da filosofia, da matemática e da geometria. Isso nos leva a refletir que, no território que hoje chamamos de Amazônia, povos milenares também realizavam movimentos sofisticados, pautados por uma consciência de convivência coletiva e estratégias próprias de sobrevivência.

“Isso muda o parâmetro não apenas para quem nasceu no Norte, mas para toda a América Latina. Quando compartilhamos essa história com pessoas de fora, elas ficam maravilhadas. É um orgulho nosso. Revela que somos muito mais do que imaginamos ser. E quando levamos isso para as escolas, imagine o impacto na cabeça de uma criança, porque ela vai entender que aqui existia toda essa potência, nesse território que também é dela. O turismo tem tudo a ver com isso, porque, junto com a educação patrimonial, promove essa profunda sensação de pertencimento”, completa.

Geoglifos devem se tornar uma potência no turismo do estado, como já tem acontecido, avalia pesquisadores. Foto: Diego Gurgel/Secom

Para quem está imerso no universo dos geoglifos, a perspectiva é de avanço constante. Ranzi e Raquel apontam que os progressos nas discussões e nas ações concretas são cada vez mais evidentes. Nesse cenário, a tecnologia surge como uma aliada estratégica, não apenas nas ferramentas que auxiliam na detecção de novas estruturas, mas também naquelas que organizam e preservam esse conhecimento, como é o caso do Instituto Geoglifos da Amazônia, que funciona como um verdadeiro banco de dados vivo.

Ao longo dos anos, o GPS e o Google Earth foram aliados nessa descoberta, mas recentemente também é usada a tecnologia LiDAR, sigla para Light Detection and Ranging, um sistema de sensoriamento remoto que utiliza pulsos de laser para medir distâncias com altíssima precisão e criar modelos tridimensionais do ambiente, revelando estruturas enterradas ou cobertas por vegetação, como geoglifos.

A defesa dos geoglifos transcende o campo histórico e cultural: ela ecoa como um chamado ambiental urgente, inserido no coração do debate sobre a preservação do território.

“Oferece uma visão não só das áreas desmatadas, mas também da floresta em pé. E isso é fundamental, porque os geoglifos podem ser mais um argumento para justificar a preservação da floresta. Aqui não pode desmatar, não só pela biodiversidade e pela importância ecológica, mas também porque esse território guarda uma civilização. O que virá, eu não sei, mas o que temos hoje já nos permite revelações incríveis”, finaliza Ranzi.

Sítios arqueológicos com geoglifos abertos à visitação nas proximidades de Rio Branco

  • Geoglifo Baixa Verde II: o sítio fica a 28 km saindo de Rio Branco, em direção a Boca do Acre, na margem direita da BR-317. A estrutura é composta por um quadrado e tem 120m de lado, com as trincheiras medindo em torno de 14,7m de largura e 1,5m de profundidade.
  • Geoglifo Severino Calazans: cortado pela BR-317, situa-se 4,5 km após o Baixa Verde II, situado à esquerda, em direção a Boca do Acre. É um quadrado com 230m de lado e trincheira com 12m de largura.
  • Geoglifo Jacó Sá: um dos mais famosos e reconhecidos mundialmente. Para chegar, basta seguir direto, 8 km ao norte do Sítio Severino Calazans, também na margem esquerda da BR-317. A estrutura é composta por dois quadrados, um deles contendo um círculo.
  • Geoglifo Tequinho: também famoso internacionalmente, está localizado 11 km à frente do Jacó Sá, próximo à entrada da Vila Pia, à direita, no Ramal do Pelé por 2,5 km. São dois grandes quadrados, com trincheiras triplas.

Fonte: Governo AC