O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) realizou, entre agosto e setembro, três escutas participativas com povos de terreiro, comunidades quilombolas e povos indígenas. Os encontros ocorrem no âmbito do projeto Andanças do Patrimônio, conduzido pela Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural do Instituto (CGESP/Iphan) e têm como objetivo reunir contribuições para a elaboração dos documentos que servirão de base para o Sistema Nacional de Patrimônio Cultural (SNPC): o 1º Plano Setorial Nacional de Patrimônio Cultural e o Marco Regulatório.
O Andanças do Patrimônio busca promover a construção participativa do SNPC de forma democrática, com a contribuição da sociedade civil, detentores, gestores, pesquisadores, mestres, estudantes e organizações públicas e privadas. Durante as escutas, temas como burocracia de acesso às ferramentas de preservação e salvaguarda, formas de proteção, linguagem e sustentabilidade apareceram como pontos centrais do debate.
A burocracia como obstáculo
Em todos os encontros, ficou claro que a maior barreira para a proteção cultural não é apenas a falta de recursos, mas a burocracia que exclui. Os povos de terreiros evidenciaram que a exigência de CNPJ e certidões de dívida ativa, por exemplo, impõem uma lógica empresarial a uma realidade espiritual e comunitária. Para as comunidades quilombolas, documentos como comprovante de residência com rua e número ou “atestado de propriedade” cartorial não dialogam com a posse coletiva dos territórios.
Os povos indígenas, por sua vez, apontaram que a identidade cultural é condicionada a registros formais, como a obrigatoriedade de inscrição para ser reconhecido como “ponto de cultura”. Para todos eles, essas exigências, que parecem neutras, acabam funcionando como agentes ativos de apagamento cultural, dificultando o acesso a políticas de salvaguarda de bens.
Novas formas de proteção
As comunidades quilombolas trouxeram uma perspectiva diferente de proteção: uma comunicação oficial do Iphan que seja mais efetiva do que uma obra de restauração. O reconhecimento formal como ferramenta de mediação de conflitos, combate ao preconceito e valorização do território. Essa visão amplia o conceito de proteção, mostrando que o patrimônio cultural também se defende com legitimidade política.
“Patrimônio” ou “matrimônio”?
Os povos indígenas propuseram uma reflexão profunda sobre o uso da palavra “patrimônio”. Para eles, o termo remete à posse e à visão patriarcal, enquanto “matrimônio” conecta herança à linhagem materna e à Mãe Terra. Mais do que uma troca de palavras, segundo eles, trata-se de uma reorientação cosmológica, que entende o patrimônio como um território vivo de memória, inseparável da terra, da espiritualidade e da ancestralidade.
O futuro é ancestral
Outro tópico abordado foi a valorização dos saberes tradicionais como respostas para os desafios do presente. Confira os pontos de cada grupo:
- Comunidades quilombolas: os saberes quilombolas não são relíquias do passado, mas tecnologias de resiliência. Seus Sistemas Agrícolas Tradicionais (SATs) e as redes de sementes crioulas são fundamentais para a soberania alimentar e a biodiversidade;
- Povos de terreiro: os terreiros guardam conhecimentos ancestrais sobre o manejo de folhas e a preservação da natureza, que podem integrar estratégias de adaptação climática; e
- Povos indígenas: o futuro não é “sustentável”, mas ancestral. Para eles, a solução para a crise climática não está apenas em novas tecnologias, mas na sabedoria de quem sempre manteve a continuidade da vida.
Público participante
As escutas reuniram públicos amplos e diversos:
- Povos de terreiro (30/09): líderes e membros de comunidades, representantes de ilhas como Itaparica (BA), servidores do Iphan, membros do Comitê Permanente para Preservação do Patrimônio Cultural de Matriz Africana (COPMAF), representantes do Ministério da Igualdade Racial (MIR) e técnicos estaduais de patrimônio, como o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (INEPAC).
- Comunidades quilombolas (18/09): representantes de associações e comunidades como Morro Alto (RN), Oriximiná (PA) e Tia Eva (MS), além de integrantes do Ministério Público, da Secretaria Estadual de Igualdade Racial do Ceará, do Iphan, de institutos estaduais, pesquisadores e consultores.
- Povos indígenas (20/08): representantes de etnias como Guarani Mbya, Karajá, Pataxó Hã-hã-hãe e Ajuru, junto de servidores do Iphan, arqueólogos, membros do Ministério dos Povos Indígenas e do Ministério de Cultura.
Todas as contribuições apresentadas serão incorporadas à construção da primeira minuta do Plano Nacional Setorial de Patrimônio Cultural, prevista para ser concluída até o final de outubro. Ao reunir diferentes vozes e perspectivas, o Iphan reafirma seu compromisso com a diversidade cultural e com a construção de uma política pública inclusiva, representativa e plural.
Fonte: Ministério da Cultura