Na região do Cariri, na divisa dos estados do Ceará, Piauí e Pernambuco, está a Chapada do Araripe, região de belezas naturais que abriga um dos ecossistemas mais ricos e singulares do semiárido brasileiro. Formado por uma mistura de Caatinga, Cerrado e uma parte de Mata Atlântica, o local não apenas sustenta espécies endêmicas como o Soldadinho-do-Araripe, mas também conserva uma relação entre natureza, cultura, identidade, história e saberes tradicionais. Cenário ideal para o encerramento da série ‘Minha Casa Natureza’.
É nesse território tão relevante para o Brasil que está em curso o Projeto Rede de Conservação e Restauração da Chapada do Araripe, uma iniciativa apoiada pelo Fundo Socioambiental CAIXA e executada pelo Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (Cepan). Com previsão de restaurar 500 hectares de vegetação nativa (Caatinga) e plantar 1,2 milhão de árvores até 2026, a ação alia restauração ecológica, justiça social e protagonismo comunitário em uma rede de transformação positiva.
O projeto já beneficiou diretamente mais de 900 pessoas e indiretamente 1,8 mil. Entre eles, estão agricultores, técnicos locais, lideranças quilombolas e mulheres de comunidades tradicionais, consolidando-se como um exemplo de recuperação ambiental com impacto socioeconômico. Pessoas que demonstram não só a vontade de preservar a terra no presente, mas também a preocupação em deixar um ambiente melhor para as gerações futuras.
“Lugar onde se constrói felicidade”
No Crato (CE), Verônica e Valéria Carvalho lideram um espaço simbólico e de resistência: o Terreiro das Pretas. O local é um aquilombamento e unidade demonstrativa de tecnologias sustentáveis. Com a chegada do projeto, as mulheres receberam apoio para a implantação de um Sistema Agroflorestal (SAF). Após a implementação do trabalho, o quintal produtivo virou também palco de formação e troca de saberes entre as pessoas da comunidade.
“Eu sou Cariri e aqui é um lugar onde a gente constrói felicidade. Receber o projeto foi muito mais que receber uma tecnologia: a gente compartilhou histórias, práticas e ancestralidade. É a tradição conversando com o futuro”, afirma Verônica, que hoje recebe estudantes, lideranças e pesquisadores interessados em aprender sobre convivência com o semiárido.
Além do Sistema Agroflorestal implantado, o espaço reúne galinheiro, hortas orgânicas, uso de águas cinzas e outras soluções adaptadas à realidade da Caatinga, sempre guiadas por uma metodologia própria, a chamada “miolagem”, que consiste em rodas de conversa informais, baseadas em escuta ativa, com o intuito de compartilhar saberes especialmente afro-brasileiros e ancestrais por meio da tradição oral.
Valéria Carvalho compartilha da mesma visão de Verônica quando o assunto é transformar territórios e reforça a importância das conexões que o projeto vem possibilitando: “A gente vai atrás de pessoas que possam somar com a gente. O aquilombamento é família, é diverso e plural. Hoje, temos a CAIXA e o Cepan como principais parceiros do nosso trabalho.”

Valéria e Verônica receberam apoio da Cepan para a implantação de um Sistema Agroflorestal (SAF)
Para Valéria, o cuidado com a terra é inseparável do cuidado com as pessoas. “A primeira coisa é valorizar a vida. Trabalhar com a terra traz saúde e o projeto também promove saúde física e mental”, explica. Para ela, o sentido de pertencimento é profundo: “A nossa casa é o nosso corpo, nosso espaço. É a natureza. E as pessoas precisam compreender isso”, finaliza.
Nascente que alimenta vidas
A cerca de uma hora dali, em Santana do Cariri (CE), a engenheira agrônoma Maria Denise Rodrigues lidera a recuperação de uma nascente fundamental para a região: o ponto de origem do Rio Cariús, responsável pelo abastecimento de parte do município. Antes tomada por pastagens e solo empobrecido, a área começou a ser reflorestada com apoio técnico do Cepan e recursos do FSA CAIXA.
Com a implantação de um Sistema Agroflorestal e o uso de mudas nativas adaptadas ao território, a propriedade hoje registra resultados positivos. “A gente conseguiu eliminar o capim exótico, dobrar o cultivo de bananeiras e reativar o ciclo da água. Ver a nascente se recuperar é algo que emociona. É saber que esse trabalho pode evitar um colapso hídrico para toda uma comunidade”, afirma Denise.

A engenheira agrônoma Denise Rodrigues explica que recuperar a nascente é evitar um colapso hídrico na comunidade
A nascente ainda está em fase de recuperação, mas já integra um conjunto de ações que prevê a restauração de 30 fontes de água na região, das quais 13 já foram efetivamente restauradas.
Agricultura familiar para preservar a terra
Francisco Pereira, agricultor de Nova Olinda (CE), é outro guardião da terra envolvido no projeto. Nascido e criado na roça, ele aprendeu o manejo de plantas com a própria família e hoje, com orientação técnica, cultiva uma diversidade de espécies no Sistema Agroflorestal. “Aqui tem graviola, abacate, milho, feijão, macaxeira… tudo sem precisar desmatar. A gente cuida da terra e ela retribui”, conta Francisco. Com uso de gotejamento, adubação verde e técnicas sustentáveis, sua produção hoje garante o sustento da família com dignidade e segurança alimentar.

O agricultor Francisco Pereira hoje conta com um Sistema Agroflorestal em sua propriedade
Elivânia Maria Batista, moradora de Santana do Cariri (CE) e integrante de uma associação de mulheres, também viu a paisagem da sua propriedade se transformar. Com a chegada do projeto, áreas ociosas passaram a ser ocupadas por frutas, hortaliças e Sistemas Agroflorestais produtivos. “Antes a gente deixava pedaços da roça sem plantar. Hoje, cada canto tem vida. E mais que isso: tem renda, tem autonomia. A gente já vende nossas frutas em feiras e vê a qualidade de vida melhorar”, relata a agricultora.

A agricultora Elivânia Batista relata que o SAF trouxe mais autonomia para o cultivo da sua terra
Ecossistema ameaçado
A Chapada do Araripe é considerada uma joia ambiental do semiárido. A transição entre biomas, a abundância de recursos hídricos e a riqueza paleontológica fazem da região um polo de biodiversidade, cultura e ciência. Mas esse patrimônio também está sob ameaça.
Segundo Carlos Augusto Pinheiro, gestor do Núcleo de Gestão Integrada Araripe do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o avanço do agronegócio e o desmatamento desordenado têm colocado em risco esse equilíbrio. “A Chapada é fundamental para a regulação climática, a proteção do solo e o abastecimento das cidades. O problema é que as pressões econômicas não estão sendo acompanhadas por uma fiscalização adequada. Preservar essa área é preservar a vida e o futuro do Nordeste”, alerta.

Para o gestor Carlos Pinheiro, preservar a Chapada é preservar o futuro do Nordeste
Além do Soldadinho-do-Araripe, ave que só existe na região e está criticamente ameaçada de extinção, a Chapada abriga uma vasta variedade de espécies medicinais e alimentares como pequi, mangaba, faveira e janaguba. O local também é uma espécie de “caixa d ‘água” natural. “Ela tem essa função de reservatório invertido porque, além da vegetação, o próprio formato do solo faz com que a água seja armazenada e vá naturalmente para as regiões ao redor”, explica Carlos.

Soldadinho do Araripe, espécie endêmica ameaçada de extinção
Foto: Gerson Amaral
Investindo no futuro
O Projeto Rede de Conservação da Chapada do Araripe conta com investimento de R$ 10 milhões do FSA CAIXA. As metas ainda estão em curso, mas já são vistos resultados alcançados: mais de 30 SAFs implantados, 25 nascentes mobilizadas e 101 pessoas capacitadas.
Para Joaquim Freitas, geógrafo do Cepan e coordenador do projeto, o impacto vai além dos números. “A população da Caatinga tem muita relação com o ecossistema para manter seus recursos, por isso, estamos falando de restauração ecológica com justiça social. O apoio da CAIXA nos permitiu articular comunidades, instituições e saberes em uma grande rede de regeneração. Estamos semeando não apenas árvores, mas possibilidades reais de transformação para o semiárido”, ressalta. “Esse também é um legado que ficará na paisagem do ecossistema”, finaliza o especialista.

Para o coordenador do projeto, Joaquim Freitas, o trabalho trata de restauração ecológica com justiça social
Resultados do FSA
Os dados do FSA refletem o saldo positivo: desde sua criação, em 2010, já foram empenhados mais de R$ 474 milhões em 228 projetos espalhados pelo país, com previsão de beneficiar mais de 50 milhões de pessoas diretamente e indiretamente. Até o momento, os recursos já viabilizaram o plantio de mais de 3,9 milhões de árvores e a preservação de 721 nascentes.
Os resultados mostram que o FSA se consolidou como uma das principais ferramentas de apoio à conservação ambiental, educação ecológica e fortalecimento socioeconômico em comunidades de todo o Brasil. Com ele, áreas degradadas foram reflorestadas, nascentes foram revitalizadas e práticas sustentáveis passaram a integrar o cotidiano de milhares de famílias que vivem e trabalham em sintonia com a natureza.

O apoio do FSA também transformou vidas. É o caso de Gabriel Rodrigues, jovem beneficiado pelo projeto de restauração do Corredor de Biodiversidade do Araguaia. “Achei a vaga na internet e, no começo, vim com essa visão puramente de trabalho. Mas quando entendi o que estava por trás, o propósito disso tudo, me encontrei. Minha autoestima ficou melhor depois que comecei a trabalhar com as plantas. Sinto que estou ajudando a mudar o planeta”, explica o trabalhador.
O mesmo aconteceu com Rosa Kampé, liderança indígena da aldeia Trindade, na Terra Indígena Rio Branco, em Rondônia. Ela lembra com orgulho como a sabedoria tradicional se somou ao conhecimento técnico trazido pelos profissionais do projeto executado pela Ecoporé. “Aprendemos muito em busca de sementes. O meu sogro, que é o ancião daqui, levou o grupo do projeto para a mata”, relembra.
Por trás dos números, estão também os profissionais que fazem a engrenagem do FSA funcionar. “O diferencial do FSA é chegar aonde, muitas vezes, grandes instituições não chegam: nos rincões do Brasil”, afirma Jean Benevides, vice-presidente em exercício de Sustentabilidade e Cidadania Digital da CAIXA.
Já a engenheira florestal Norivânia Diniz, analista de produção de mudas na Black Jaguar, que atua no Corredor do Araguaia, também vê no Fundo um potente instrumento de educação. “Quando as pessoas veem o ciclo da semente até a árvore e entendem o trabalho na floresta, isso ensina muito a elas. A gente abre uma perspectiva que antes era desconhecida. Elas passam a enxergar a natureza de uma forma mais ampla”, explica.

(Da esquerda para a direita): Jean Benevides, Norivânia Diniz, Rosinha Kampé e Gabriel Rodrigues: transformando e tendo vidas transformadas através do FSA CAIXA
Esta é a última reportagem da série Minha Casa Natureza, um conjunto de histórias que apresentou diferentes biomas e territórios para falar sobre a capacidade transformadora do Fundo Socioambiental CAIXA (FSA). Além da Chapada do Araripe, mostramos projetos que estão fazendo a diferença na Chapada dos Veadeiros (GO), no Corredor de Biodiversidade do Rio Araguaia (TO e PA) e em diversos municípios de Roraima.