STJ prorroga até 30 de setembro prazo para regulamentação do cultivo medicinal da cannabis

Saúde

Especialista em direito canábico, advogado Wesley Cesar diz que ato “é como desenhar estrada que liga o campo à farmácia, mas com postos de fiscalização no caminho”, e alerta para riscos de exclusão a quem mais necessita

Foto: Gustavo Lima

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) prorrogou até 30 de setembro o prazo para que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a União editem regulamentação do cultivo medicinal da cannabis por empresas. O julgamento de questão de ordem foi realizado nesta quarta-feira (11/6). O prazo original era até 19 de maio, mas ambos apresentaram um plano com diversas iniciativas em curso, além de outras ações estratégicas a serem executadas de acordo com o novo prazo definido.

Advogado especialista em direito canábico, Wesley Cesar explica que o governo federal já está sendo pressionado a criar essa regulamentação desde novembro de 2024. “O que vemos agora é uma corrida contra o tempo para evitar o que já se tornou comum no Brasil, pacientes judicializando o direito de plantar ou importar remédios de cannabis”, complementa.

Para exemplificar, o advogado diz que “regular do plantio à prateleira é como desenhar uma estrada que liga o campo à farmácia, com postos de fiscalização no caminho.” Para determinar uma regulamentação seria necessário definir quem planta, quem fiscaliza, quem transporta, quem transforma em medicamento e como esse produto chega de forma segura e acessível ao paciente.

No entanto, enquanto o plano de ação aparenta ser um bom sinal, por integrar os ministérios da Saúde, Justiça e Agricultura, Wesley Cesar alerta que a eficácia depende da coerência entre a lei e sua aplicação prática. “Um bom decreto não basta se a Anvisa não souber como implementá-lo ou se a Polícia Federal continuar tratando pequenos cultivadores como criminosos”, esclarece.

De acordo com a ministra Regina Helena Costa, relatora do processo, o plano proposto passa a vincular a União e a Anvisa em relação às providências descritas, o que também se aplica quanto aos prazos definidos para as respectivas implementações. Entre seus objetivos estão a aprovação de atos normativos necessários para regular a cadeia de atividades relacionadas à produção e ao acesso a derivados de cannabis, a criação de espaços de diálogos ampliados com segmentos sociais e a articulação de setores do Poder Executivo na elaboração de propostas para a regulamentação.

Desafio Jurídico
A contradição entre a Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), que proíbe a cannabis, e a realidade médica é apontada como o principal obstáculo. Para essa lei, a cannabis é uma substância proibida, salvo em casos excepcionais autorizados pela Anvisa ou pelo Judiciário. “É necessário criar um ambiente regulado que não criminalize o próprio paciente ou produtor autorizado”, comenta o especialista.

Outro possível obstáculo burocrático é a fragmentação institucional. “O Ministério da Saúde pode reconhecer o valor terapêutico da cannabis, mas o Ministério da Justiça e a Polícia Federal ainda operam com lógica de repressão. Já o Ministério da Agricultura precisará classificar e fiscalizar o cultivo, algo inédito no país em escala nacional”, ressalta. Ele diz ainda que, para funcionar, é necessário que o governo tenha “um decreto claro, técnico e com força normativa suficiente para guiar todos esses órgãos”.

Restrição
Ao tratar do projeto do senador Flávio Arns (PSB-PR), que propõe que apenas entidades autorizadas, como laboratórios, associações e empresas, possam cultivar para fins medicinais, o advogado avisa que essa proposta exclui o cultivo individual com autorização judicial, que tem sido a única saída para muitos pacientes.

“Minha análise é que do ponto de vista jurídico, não existe um impedimento constitucional para o cultivo pessoal com finalidade terapêutica, desde que com autorização do estado”, conta Wesley Cesar. A intenção de que entidades possam facilitar a fiscalização, mas dificulta o acesso de quem não tem recursos para pagar nem por produtos industrializados nem para esperar possíveis políticas públicas.

Expectativas
Para o especialista, a regulamentação tem um enorme potencial para reduzir a judicialização, já que quando o estado define regras claras, ele tira o paciente da incerteza e do risco de criminalização. Entretanto, defende a necessidade que a regulamentação elaborada seja inclusiva e operacional, já que muitas universidades e centros de pesquisa enfrentam um labirinto burocrático para estudar cannabis, e muitos pacientes enfrentam custos altos.

Quanto aos riscos jurídicos, para Wesley, podem existir três frentes: a interpretação da Lei de Drogas, que ainda classifica a planta como proibida; a atuação das forças policiais que podem seguir tratando cultivadores como traficantes se não houver orientação institucional clara; e a ausência de polícia de distribuição pelo SUS que empurra pacientes para o mercado privado ou para a Justiça.

“Na minha opinião, a solução está em mecanismos como cadastro nacional de pacientes, rastreabilidade das plantas, auditorias regulares e protocolos claros de cultivo e dispensação. Mas é essencial que a fiscalização não seja punitiva, e sim orientadora, senão, corremos o risco de transformar a esperança terapêutica em novo alvo da repressão”, argumenta.

Segundo o advogado, o caminho seria ter regras claras para quem vai cultivar, produzir e vender; capacitação urgente de médicos e farmacêuticos para prescrição responsável e, principalmente, a inclusão desses medicamentos no SUS, com distribuição gratuita ou subsidiada para quem mais precisa. “O grande teste será transformar essa política pública em acesso real com agilidade, segurança e humanidade.”