A cada dois anos, o Congresso reinventa a roda eleitoral, normalmente para beneficiar partidos grandes, blindar interesses e contornar decisões do Judiciário
Por José Américo Moreira da Silva*
Foto: Arquivo/Senado
Mais uma vez, o Congresso Nacional se debruça sobre uma ampla reforma eleitoral — e mais uma vez, o faz ao estilo brasileiro: com pouca ou nenhuma participação popular, sob a sombra dos interesses corporativos dos partidos políticos e de seus parlamentares.
O novo Código Eleitoral, atualmente em debate no Senado, reúne mais de 900 artigos distribuídos em 23 livros e promete substituir sete leis diferentes que regulam o sistema eleitoral brasileiro. O relator da matéria, senador Marcelo Castro (MDB-PI), já admite alterações no texto após três audiências públicas realizadas na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Mas o problema não está apenas no conteúdo — está no processo.
A pressa em aprovar a nova legislação até 3 de outubro, para que possa valer já nas eleições de 2026, revela muito sobre a lógica que move os legisladores: não é a busca por uma reforma estruturante e democrática, mas sim o ajuste das regras do jogo conforme a conveniência de quem já está no poder. A cada dois anos, o Congresso reinventa a roda eleitoral, normalmente para beneficiar partidos grandes, blindar interesses e contornar decisões do Judiciário.
O caso da participação feminina é simbólico. O projeto reserva 20% das cadeiras legislativas para mulheres — uma medida aparentemente progressista — mas, ao mesmo tempo, esvazia punições a partidos que descumprirem a cota de 30% de candidaturas femininas. A punição, que foi conquistada a duras penas, será tornada “inaplicável” por 20 anos. Ou seja, o projeto avança no discurso, mas recua na prática. É um “reformismo sem risco”, que finge mudar para manter tudo como está.
Outro ponto polêmico é a exigência de desincompatibilização de juízes, promotores, militares e policiais com quatro anos de antecedência caso queiram disputar eleições. Embora o argumento da impessoalidade seja legítimo, a medida soa desproporcional e parece direcionada a um grupo político específico — uma espécie de barreira velada a outsiders de farda que ameaçam o monopólio das oligarquias partidárias tradicionais.
E ainda há mudanças que podem dificultar a renovação política. O novo texto aumenta o número de assinaturas exigidas para criação de partidos, encurta prazos para formalização e impõe sanções a legendas que abandonarem federações partidárias. A mensagem é clara: quanto menos concorrência, melhor para os de sempre.
Tudo isso avança sem que a sociedade seja ouvida. As audiências públicas são protocolares, pouco divulgadas e praticamente inacessíveis para o cidadão comum. Não há campanha institucional para explicar as mudanças, tampouco iniciativas de escuta popular. A reforma eleitoral segue sendo uma engenharia construída a portas semiabertas, sob domínio técnico e político de quem já ocupa o centro do tabuleiro.
Enquanto isso, a população assiste — ou melhor, nem assiste. A desconexão entre representantes e representados se aprofunda. E a cada reforma, o sistema político se torna mais autorreferente, mais hermético, mais resistente à mudança real.
A democracia não se faz apenas com voto; ela exige participação, transparência e pluralidade. Reformar o sistema sem envolver o povo é o caminho mais curto para corroê-lo por dentro. E é isso que, infelizmente, estamos vendo mais uma vez.
*José Américo Moreira da Silva é jornalista e publicitário